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Como ajudar um enlutado por suicídio? - por Flávia Andrade




Como ajudar um enlutado por suicídio?

O luto é considerado uma reação humana a perda de algo existencialmente significativo, seja um ente querido ou o rompimento de algum laço afetivo, por exemplo.
Donald Woods Winnicott, psicanalista inglês, considerava o luto como um processo de transformação, uma espécie de transição de uma dor psíquica muito profunda, até uma forma de nostalgia. Em outras palavras, a dor intensa da perda, vai, com o tempo de cada um, de cada sujeito, sendo substituída por saudade, por lembrança.
Para Winnicott é necessário e absolutamente saudável, do ponto de vista psíquico, vivenciar o luto, chorar a dor da maneira com que cada um, singularmente, a sinta. Os limites emocionais são absolutamente individuais e, em decorrência, a dor do luto e a maneira de expressar essa dor, também é absolutamente individual. Não cabe portanto, comparar dores ou minimizar a dor do outro, menos ainda julgar essa dor.
No caso de luto por suicídio, justamente pelo que o próprio suicídio representa e invoca em termos de estigmas morais (especialmente os secundários a dogmas religiosos), a dor do luto pode ter alguns agravantes e especificidades.
O suicídio em muitos casos deixa uma situação de dor e violência extrema escancaradas. Em alguns casos,os entes da pessoa que se foi se deparam com a cena da morte e isso pode ser devastador. Além disso, o suicídio pode suscitar naqueles que ficam a culpa, a auto-acusação e especialmente o desejo de obter respostas.
É muito comum que haja ainda sentimento de vergonha, o que pode fazer essas pessoas esconderem o fato e se isolarem com suas dores enormes, sem saber o que fazer com elas.
É preciso acolher a dor dos enlutados principalmente em três aspectos: autorizar a dor, desmistificar a questão da culpa e a questão da vontade de obter explicação, pois, como esclarecem Fukumitsu e Kovacs (2016), muitas vezes, a verdade foi embora com aquele que morreu.
É imperativo assinalar que o suicídio é um fenômeno multifatorial, ou seja, multicausal, e ainda que suscite dúvidas e muitas angústias e perguntas em quem fica, é um ato individual. Seria praticamente inviável responder porque alguém tiraria a própria vida; isto é um processo individual complexo e de muita angústia para se obter uma única explicação.
Um fenômeno como o suicídio é multifatorial e não poderia ser explicado por um acontecimento único e pontual. A construção de uma angústia como a que leva a um ato como esse só pode ser algo de complexidade tal, que não caberia tentar desenrolar o nó perguntando "porque?"
Prevenimos o suicídio enquanto há vida, pois refletir sobre suicídio e sobre morte em geral é pôr em pauta, antes de qualquer outra coisa, a significação e o sentido próprio do viver. Há tempos, os filósofos sabem que a morte não é um tabu, (como passamos a encará-la socialmente), mas sim um tema que nos faz pensar no modo que escolhemos viver. Pensar a morte é refletir sobre a vida. Do mesmo modo, Camus (filósofo argelino/francês) já admitia considerar o suicídio como a questão filosófica essencial. O suicídio, diz Camus, é o que nos faz refletir sobre se a vida vale a pena ser vivida. Nesse sentido, entendemos que decidir o que vale a pena na vida é do âmbito individual, significado e sentido de vida, é algo que cada um busca construir, reinventar e transformar para si, constantemente. E é talvez isso que o suicida deixe de conseguir, em determinado momento; se torna angustiado a tal ponto que não vê mais a oportunidade de reinventar significados para a própria existência. É justamente por isso que podemos entender que o enlutado apenas intensifica o sofrimento ao perguntar porquê? Porque nós talvez jamais entendêssemos os motivos de alguém tirar a própria vida. O suicídio se previne em vida, mas infelizmente, nem sempre é possível evitar totalmente que ocorram.
De acordo com Fukumitsu e Kovacs (2016), os enlutados por suicídio enfrentam, além da dor da perda por morte, a dor da culpa, da vergonha (pelos fatores morais aos quais o suicídio se relaciona) e muitas vezes das autoacusações, uma vez que o enlutado nesse caso pode ser levado a pensar que poderia ter agido de modo a evitar o ato suicida.
Se autoacusar ou procurar respostas pode ter o efeito de apenas aumentar a dor do luto e da perda, que já e imensa. É preciso sim, autorizar o choro, o luto e a despedida, mas sem intensificar atitudes ou dores que só irão machucar ainda mais.
É preciso que os enlutados por suicídio saibam que merecem apoio, afeto e acolhimento para suas dores. E principalmente, que é possível reconstruir sua história e retomar suas vidas, apesar desse processo tão doloroso. Para resumir, quando me perguntam o que dizer a alguém que está enlutado, geralmente respondo que nesses casos pode ser mais necessário ouvir do que falar. E agir de modo a mostrar-se disponível; abraçar, acolher o choro, não julgar. Dizer, com ações, a frase: "onde dói e como posso te ajudar?'

(Flávia Andrade Almeida - Psicóloga Clínica e Hospitalar Especialista em Prevenção do Suicídio. Mestranda em Filosofia com o tema "Suicídio segundo Michel Foucault. Autora do blog e página Psicologia e Prevenção do Suicidio).


Abaixo links úteis e a relação dos grupos de apoio aos sobreviventes (enlutados) por suicídio.
Caso precise de ajuda ligue CVV (Centro de Valorização da Vida) 188 - ligação gratuita em todo o território nacional.

Referências bibliográficas


CAMUS, Albert. O Mito de Sísifo . Rio de Janeiro: BestBolso, 2013.

FUKUMITSU, Karina Okajima e KOVACS, Maria Júlia. Especificidades sobre processo de luto frente ao suicídio. Psico (Porto Alegre) [online].2016, vol.47, n.1, pp. 03-12. ISSN 1980-8623. http://DX.doi.org/10.15448/1980-8623.2016.1.19651

WINNICOTT, Donald Woods. Privação e delinquência. São Paulo: Martins Fontes, 2014

Links úteis:

CVVGASS:

Cartilha "Preventing suicide" Organização Mundial da Saude: 

Cartilha "Suicídio, informando para prevenir" Associação brasileira de psiquiatria:

CVV - Centro de Valorização da vida:




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