O luto por suicídio e suas especificidades
O luto é
considerado um processo normal do ponto de vista humano-existencial; um
fenômeno reativo à perda de um ente querido.
Esse
entendimento atual é bem próximo ao de Freud que descrevia o luto como uma
reação (normal) à perda de um ente querido, ou à perda de algo existencialmente
importante (como num término de relacionamento amoroso) etc. Freud assinalou
que embora o luto possa envolver importantes (e passageiros) afastamentos
daquilo que se constitui como atitude normal em relação à vida, não se trata
necessariamente de uma condição patológica passível de tratamento médico.
Já para
Winnicott (psicanalista inglês), a perda do ente querido desperta sentimentos
ambivalentes (amor e raiva) que são sentimentos que ficam introjetados no
enlutado. Ao longo do processo de elaboração do luto (num período que pode
variar de pessoa para pessoa) a ambivalência tende a se dissolver, a raiva se
dissipar e a angústia pela perda se transformar em nostalgia; em lembrança
afetuosa do ente que se foi. Isto, para Winnicott, é parte saudável do processo
existencial e humano e a dor precisa ser reconhecida, não ignorada, pois,
justamente, ignorar a dor pode culminar em processos psíquicos patológicos.
Diversos
outros teóricos no âmbito das ciências psi se dedicaram a
estudar o fenômeno do luto que só é considerado patológico atualmente, de
acordo com critérios psiquiátricos específicos (geralmente associados a
depressão) os quais não nos dedicaremos a estudar aqui.
Esta prévia
contextualização serve para nosso propósito apenas de base para refletir, ou
levantar a questão do luto por suicídio.
O suicídio é
uma forma de morte que causa perplexidade, pode ser interpretado como denúncia
de um modo social patológico de relações (falamos disso em outro artigo aqui )
Por ser um
tema ainda hoje rodeado por questões morais, religiosas e mesmo por questões
políticas que justificam seu tratamento enquanto tabu, o suicídio é um tema que
suscita muitas vezes receio. É quase sempre com ares de hesitação que se toca
nesse assunto.
É como se o
suicídio levantasse debaixo do tapete algo vergonhoso, como se de fato houvesse
no ato suicida uma denúncia.
A suposta
denúncia que o suicídio implica pode estar relacionada a fatores sociais que
não nos adentraremos aqui, mas que passam pela noção de que a felicidade, a boa
saúde e o bem estar são os imperativos sociais. Qualquer comportamento ou ação
que se desvie desse padrão imperativo de felicidade é visto como estranho,
alheio e, às vezes, anormal.
Desse modo,
o suicídio pode denunciar que as relações nem sempre são fáceis, que os
contextos sociais e políticos nem sempre são justos e que nós, de forma geral,
nem sempre nos relacionamos com empatia. O suicídio é tratado com hesitação, e
de modo análogo, a dor e a angústia são atualmente tratados com
hesitação e corriqueiramente são evitados. O suicídio então pode nos colocar
frente ao modo como temos tratado a tristeza, a angústia e a dor (nossa e a do
outro).
Nos casos de
suicídio o processo de luto pode trazer sentimentos avassaladores
de culpa. Uma morte escancarada e violenta como o suicídio provoca muita
dor ao seu redor. Além da dor da perda, a dor de encontrar o ente morto e
outras circunstâncias absolutamente tristes, o enlutado pode ser tomado por uma
culpa intensa. Este sentimento muitas vezes está ainda aliado ao hábito que é
muito comum de se perguntar "por que?" quando alguém comete suicídio.
A pergunta da motivação nesses casos não tem resposta e tentar buscá-la só tem
como resultado o reforço da dor do luto. A dor do luto nesses casos já é
bastante intensa, e a busca do porquê não traz benefícios, uma
vez que não seria possível uma resposta única para um ato tão extremo. Um
fenômeno como o suicídio é multifatorial e não poderia ser explicado por um
acontecimento único e pontual. A construção de uma angústia como a que leva a
um ato como esse só pode ser algo de complexidade tal, que não caberia tentar
desenrolar o nó perguntando "porque?"
Prevenimos o
suicídio enquanto há vida, pois refletir sobre suicídio e sobre morte em geral
é pôr em pauta, antes de qualquer outra coisa, a significação e o sentido
próprio do viver. Há tempos, os filósofos sabem que a morte não é um tabu,
(como passamos a encará-la socialmente), mas sim um tema que nos faz pensar no
modo que escolhemos viver. Pensar a morte é refletir sobre a vida. Do mesmo
modo, Camus (filósofo argelino/francês) já admitia considerar o suicídio como a
questão filosófica essencial. O suicídio, diz Camus, é o que nos faz refletir
sobre se a vida vale a pena ser vivida. Nesse sentido, entendemos que decidir o
que vale a pena na vida é do âmbito individual, significado e sentido de vida,
é algo que cada um busca construir, reinventar e transformar para si,
constantemente. E é talvez isso que o suicida deixe de conseguir, em
determinado momento; se torna angustiado a tal ponto que não vê mais a
oportunidade de reinventar significados para a própria existência. É justamente
por isso que podemos entender que o enlutado apenas intensifica o sofrimento ao
perguntar porquê? Porque nós talvez jamais entendessemos os motivos
de alguém tirar a própria vida. O suicídio se previne em vida, mas
infelizmente, nem sempre é possível evitar totalmente que ocorram.
De acordo
com Fukumitsu e Kovacs (2016), os enlutados por suicídio enfrentam, além da dor
da perda por morte, a dor da culpa, da vergonha (pelos fatores morais aos quais
o suicídio se relaciona) e muitas vezes das autoacusações, uma vez que o
enlutado nesse caso pode ser levado a pensar que poderia ter agido de modo a
evitar o ato suicida.
Fukumitsu e
Kovacs ressaltam ainda que buscar a verdade por trás do ato é agir em vão, já
que a verdade se foi com aquele que tirou a própria vida. E isso não deve
validar nem a vergonha, nem a culpa, nem a autoacusação. Pelo contrário, o
enlutado por suicídio precisa de apoio para lidar com suas dores e com a
elaboração do fato de não ser sempre possível evitar suicídio, apesar de
devermos sempre lutar pela prevenção.
A
desmistificação do suicídio e do luto, são caminhos necessários a se percorrer
no objetivo da prevenção do suicídio. E para isso é imprescindível dizer aos
enlutados: a escolha não foi sua e é possível continuar a viver, apesar de toda
essa dor. Há para o enlutado, assim como para alguém em risco de suicídio,
diversos grupos e modos de apoio, acolhimento e informações.
Cabe
repetir; a prevenção do suicídio começa por nos interrogarmos sobre como
estamos lidando com a vida. E para essa reflexão ser honesta, é preciso
refletir e debater, morte, dor, perdas e o próprio suicídio.
Ressaltamos,
por fim, que os cuidados com os enlutados por suicídio precisam ser mais
divulgados para que essas pessoas em extrema dor e sofrimento possam ser
auxiliadas até se restabelecerem e seguirem em frente com suas próprias vidas e
ressignificarem suas dores e suas histórias.
Abaixo deixo
links úteis e o link com uma relação de grupos de apoio aos sobreviventes
(enlutados) por suicídio.
(Flávia
Andrade é Psicóloga Clínica e Hospitalar Especialista em Psico-Oncologia e
Prevenção do Suicídio. Mestranda em Filosofia com o tema "O Suicídio segundo
Michel Foucault. Autora do blog Psicologia e Prevenção do Suicídio)
Se precisar
de ajuda ligue 188 - CVV (Centro de valorização da vida)
Referências bibliográficas
CAMUS,
Albert. O Mito de Sísifo . Rio de Janeiro: BestBolso, 2013.
FUKUMITSU,
Karina Okajima e KOVACS, Maria Júlia. Especificidades sobre processo de luto
frente ao suicídio. Psico (Porto Alegre) [online].2016, vol.47, n.1, pp. 03-12.
ISSN 1980-8623. http://DX.doi.org/10.15448/1980-8623.2016.1.19651
WINNICOTT,
Donald Woods. Privação
e delinquência. São Paulo: Martins Fontes, 2014
Links úteis:
CVVGASS:
Cartilha "Preventing suicide" Organização Mundial da
Saude:
Cartilha "Suicídio, informando para prevenir" Associação
brasileira de psiquiatria:
CVV - Centro de Valorização da vida:
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