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A morte enquanto tabu






É bastante corriqueiro nos nossos dias ouvir que a morte é um tabu, aquilo sobre o que não se quer falar, ou antes, aquilo sobre o que não se quer pensar.
Vemos o quanto a morte está nesse lugar de tabu, do interdito, por exemplo, quando notamos ser corriqueiro que se escondam as mortes das crianças, quando se evita a presença destas em hospitais, UTI’s e funerais. Como se a criança não pudesse, psiquicamente, elaborar o fato, inevitável, de sermos todos, (inclusive elas), mortais.
O historiador francês Philippe Ariès, conhecido por seus estudos históricos sobre as representações sociais da morte, nos revira um pouco de nosso modo naturalizado de entender a morte. Em um de seus estudos, ele remonta as representações sociais da morte antes do século XVIII, fazendo ver que, na sociedade ocidental, a morte nem sempre foi tratada como tema censurado. Ariès assinala que antes do século XVIII a morte já havia sido uma “morte domada”, ou seja, um fenômeno parte do cotidiano. Nesse contexto, as crianças participavam dos funerais, a morte era assunto corriqueiro; aos adoentados, muitas vezes em terminalidade, era dado o direito a morrer em casa, em companhia de seus familiares e o momento da morte era altamente ritualizado. Havia, portanto, conversa, elaboração, despedida de quem estivesse morrendo. Aquele que sabia estar em seus últimos dias provavelmente tinha oportunidade de resolver suas pendências existenciais, fossem quais fossem.
Com o passar dos anos (dos séculos) e sobretudo, em fim de século XVIII para século XIX, algo importante se deu: o que antes era parte do cotidiano agora não era mais algo visto. A morte saiu da esfera pública, deixou de ser ritualizada, deixou de ser pensada, falada, chorada publicamente. Nesse contexto, diz o  historiador, passamos à era da “morte interdita”. A morte, antes cotidiana e pública foi institucionalizada; passou a ocorrer, sobretudo, no hospital. Até nossos dias isso é o mais comum: interdita, a morte e seus assuntos (luto, funerais etc), são temas geralmente abordados de modo restrito, com ares de hesitação, com reservas. Há, como que naturalizada a ideia de que sempre foi assim. Há como que naturalizada a noção de que não se fala de morte porque esse fenômeno (natural e inevitável) provoca angústia, medo, etc.
Lidamos frequentemente com a morte como se ela sempre tivesse sido esse assunto proibido, aquilo a que não se deve mencionar. É claro, nesse ponto, que isso nos traz milhares de implicações, algumas destas atualmente tratadas e refletidas por profissionais da saúde (especialmente os de cuidados paliativos), pois, se cercamos o momento dos nascimentos de cuidados, acolhimento e preocupações, porque, de certo modo, silenciamos a morte e fazemos parecer que aqueles que estão partindo não precisam falar, pensar, resolver os assuntos relacionados à sua partida, à sua finitude?
Tratar a morte como o não dito, traz (ou pode trazer) extrema angústia tanto aos que se sabem partindo, quanto aos que ficam, que não podem se despedir. Ao interditar a morte, nós estamos negando esse acontecimento inevitável e parte do que dá sentido a nossa existência. Ao censurar a morte, acumulamos milhares de assuntos não resolvidos com nossos lutos, os dos familiares, os das crianças etc.
Mas, novamente nos deslocando do campo das naturalizações, nos sacudindo as próprias evidências e aquilo que encaramos como obvio, o filósofo francês Michel Foucault (pensador contemporâneo), nos traz importantes contribuições sobre a temática da morte. Em suas análises histórico/filosóficas sobre o estatuto político da vida (sobretudo a partir do século XIX), Foucault nos mostra o que pode ser uma coerente hipótese para explicar o fenômeno descrito por Ariès. Justamente por volta do século XIX, diz o filósofo, houve uma mudança contundente em termos de poder político. A forma de exercer poder não mais se ocupava de fazer morrer os desobedientes, mas de gerir a vida. O biopoder é descrito por Foucault como a entrada da vida (no sentido político) na história. O poder político precisa, a partir desse ponto, fazer viver a população visando seu equilíbrio e potência produtiva (em termos econômicos). Nesse sentido (para além de reflexões óbvias e banais) a vida se torna o bem maior a ser mantido, e a saúde o imperativo social, obrigação de todos. Numa realidade social que passa a ter sua preocupação política nuclear em torno da vida e das formas de viver não é de se estranhar que a  morte passe a seu oposto (para além do sentido natural e literal). Morrer é como que fracassar. Numa sociedade de poder centrado na vida, na saúde, na produção, na realização e nos demais ideais (ou fantasias) capitalistas, adoecer é algo proibido. Adoecer física ou psiquicamente é como uma denúncia de fraqueza ou de negligência. Morrer, assim como se entristecer, chorar, sofrer, em suma, resistir, é encarado frequentemente como fraqueza; inaptidão para a realidade competitiva da suposta salubridade social. A morte fica nesse âmbito como o extremo desse contexto, o ápice do fracasso a que não se deve sucumbir.
Sim, morrer é quase como sucumbir. Sucumbir por não aguentar as pressões e com isso adoecer. Nesse sentido, não é de nos causar espanto que a morte, tenha se tornado o assunto interdito, um tabu, uma censura moral. Não é de nos causar espanto que queira-se esconder da esfera pública esse fracasso; esconder das crianças, esconder da própria pessoa que está partindo, etc.
Não estamos com isso dizendo que a morte (a nossa ou a partida de alguém), não cause sofrimento. Ao contrário, sabemos o quanto é penosa a despedida, a grande fatalidade do nunca mais estarmos perto de quem amamos. Mas é justamente por saber desse pesar que precisamos trazer a tona a discussão sobre a morte. Porque o interdito da morte faz rarear a reflexão sobre a dignidade do morrer, das formas de morrer, da naturalidade da morte. É urgente dizer: a morte não é um tabu, ela é parte do que iremos vivenciar, enquanto unos, sozinhos. E é pelo fato de sermos mortais que nossa existência individual faz sentido e risco. Desnaturalizar a morte enquanto tabu é abrir o precedente para sua humanização, para sua ressignificação enquanto processo natural da vida e enquanto fenômeno e momento digno de cuidados e acolhimento. Desnaturalizar a morte enquanto tabu, discuti-la de modo amplo e não banal é talvez a única via de garantir sua dignidade.

(Flávia Andrade Almeida é Psicóloga Clínica e Hospitalar, Especialista em Prevenção do Suicídio e Psico-Oncologia. Mestranda em Filosofia com o tema: O suicídio na perspectiva da biopolítica –  um estudo à luz dos escritos de Michel Foucault. Autora do blog e página do Facebook “Psicologia e Prevenção do Suicídio”)


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