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A deslegitimação da tristeza e da subjetividade no processo de adoecimento físico


A noção de saúde no contexto social parece estar naturalizada. É como se por saúde entendêssemos algo do campo do óbvio. Como se saudável fosse meramente aquele que não sofre de nenhum tipo de perturbação física ou psíquica.
No campo dos saberes da saúde o conceito vem sendo discutido há algum tempo. A noção de saúde como ausência de doença parece não ser a mais adequada e a Organização Mundial da Saúde adverte que estar saudável não se restringe a não ter doenças. Por outro lado, saúde como estado de bem-estar pode remeter a um entendimento vago e genérico, pois aquilo que pode trazer sensação de bem-estar varia de acordo com cada pessoa.

De todo modo, o que parece indiscutível é que invariavelmente chega, junto a qualquer tipo de adoecimento, a angústia. Geralmente a angústia e a tristeza são relacionadas ao tipo e a gravidade do adoecimento. Algumas vezes estão relacionadas diretamente ao medo da morte. E nesse ponto, perguntamos: em nossa sociedade, há lugar para tristeza, sofrimento, dor, angústia? Essas manifestações psíquicas e emocionais são consideradas no processo de tratamento e/ou reabilitação no campo da saúde?

Aqui a intersecção entre doença, subjetividade e angústia se torna presente e visível, mas não necessariamente considerada. E podemos afirmar que há certa tendência a esconder ou até mesmo tentar anular as angustias decorrentes do adoecimento. É como se o ethos, a racionalidade social vigente estimulasse a ideia de que a satisfação, a produtividade e a felicidade são a tradução da vida e da saúde e  por outro lado, dor, doença e angústia consistissem no seu oposto, no fracasso. Aquilo que traduz supostamente a falha, a fraqueza no bem viver tende a ser banido e junto a isso praticamente se demoniza a tristeza. Há certo imperativo social de que o par tristeza/fraqueza é inseparável. Como se o âmbito do que é humano, existencial não contemplasse a dor e a tristeza. E é justamente no campo da crise e da tristeza que enxergamos o que é essencial: nosso limite próprio, individual e instransferível.

Não é raro nos ambientes médico/terapêuticos ouvirmos dizerem aos pacientes em tratamento "não se entristeça, não chore, você precisa ser forte", como se o adoecimento não provocasse um choque ao qual é preciso deixar-se reagir e como se o choro impossibilitasse a cura.

Deslegitimar e desqualificar a tristeza é passar por cima dos nossos limites emocionais, é como que afirmar que somos máquinas formuladas para a felicidade, produtividade e para a realização.
A consequência disso é clara: muitas pessoas não aguentam. O limite que se ultrapassa de si, o psiquismo faz emergir muitas vezes em doença, em depressão e, algumas vezes, em desejo de acabar com a própria vida.

Os ideais de saúde, em larga medida, são generalizantes, normativos. Há uma medida do ideal, do considerado típico, normal esperado e os desvios necessitam de correção, e, preferencialmente, rápida, medicamentosa, sem choro e sem reflexão. Não abrem-se as brechas para que cada um, em seu próprio processo individual e limite pessoal se adeque aos poucos às suas novas condições de vida. A doença não é uma dimensão da saúde. A doença é uma dimensão da vida, dizia o filósofo Georges Canguilhem. E é muitas vezes a essa nova condição de vida ocasionada pelo adoecimento que o sujeito pode se adaptar de acordo com suas possibilidades e características próprias.

Canguilhem propunha uma concepção de saúde diferente das noções que podem ser normativas porque pressupõem ideais restritos e generalizantes. Para o filósofo, não é possível, a partir da  ocorrência da doença e mesmo com sua cura, retornar ao ponto zero àquilo que era o sujeito antes do diagnóstico. Há, nesse período, um processo: a doença e suas implicações transformaram as condições de vida, o percurso e a história do sujeito e é nessa transformação que será pensada a sua melhor condição de saúde dali para frente. Falamos aqui mais em reabilitação do que em cura. Para Canguilhem a saúde não se define pela média nem pelo ideal, mas pela plasticidade normativa. Para ele a média e os ideais podem ser impositivos por partirem do universal para o individual. E de acordo com esse filósofo (e médico) a saúde pode ser a capacidade de manter-se em ação, mesmo com limitações. Ou seja, a saúde pode ser a capacidade de se adaptar a condições limitantes de vida, mantendo-se, na medida do singularmente possível, ativo e com a autonomia preservada e respeitada. 

O médico pediatra e psicanalista inglês contemporâneo, Winnicott, também entende a capacidade criativa como indicação de saúde pessoal. Para Winnicott é imprescindível integrar-se psiquicamente e desenvolver a capacidade de recriar-se, mesmo diante de sofrimentos, sejam eles físicos ou psíquicos. E Winnicott vai além, pois enfatiza a importância de se compreender e respeitar as próprias angústias como parte da constituição de si e da reinvenção da própria potência para a vida. É muitas vezes nos momentos de dificuldade e crise que os indivíduos refletem e enxergam os próprios medos, angústias e limites, os quais é preciso respeitar. Lembramos, nesse ponto que tristeza, angústia e sofrimento não são sinônimos de depressão. A tristeza e o sofrimento psíquico podem estar relacionados e podem ser sintomas de depressão, mas não se trata da mesma coisa. Podemos estar em sofrimento psíquico, o qual precisa ser compreendido em sua singularidade, sem estarmos necessariamente com quadros depressivos (que requerem tratamento adequado).
Para Winnicott, em suma, recuperar a saúde (física e psíquica) é um processo que precisa ser vivenciado pela pessoa como uma criação sua para que sua reabilitação esteja de acordo com seu sentido individual de existir.

Se seguirmos o entendimento de Canguilhem e Winnicott o objetivo dos tratamentos não seria apenas a extinção de sintomas, mas a reabilitação do indivíduo como um todo, como um ser humano momentaneamente abalado que precisa de apoio para que reencontre sua potência individual como ser criativo e capaz de se reinventar. De acordo com Canguilhem, não é possível recuperar necessariamente a mesma potência biológica de antes do adoecimento, mas, justamente por não sermos máquinas, podemos estar sempre em transformação e amadurecimento. Somos o resultado de nossas trajetórias e elas incluem os adoecimentos, as crises e as angústias. Nossa constituição enquanto sujeitos inclui nossas cicatrizes físicas e emocionais.

As concepções de saúde de Canguilhem e Winnicott se aproximam da noção de grande saúde, proposta pelo filósofo alemão Nietzsche. Para Nietzsche a grande saúde não é um ideal único e absoluto, mas uma concepção que engloba momentos de enfermidade e que consiste em nossa capacidade plástica, mutável de manter a potência de vida mesmo quando em momentos de crise.

A reflexão sobre essas diferentes noções sobre saúde nos faz ver que passar por momentos de dificuldades decorrentes de adoecimento e sentir-se emocionalmente abalado é parte do processo de adaptação e dele faz parte a angústia. A tristeza, portanto, tem importância fundamental no enfrentamento de diversas situações da vida, entre elas o adoecimento. Nesse sentido é imperativo afirmar: estar doente não é estar condenado a uma vida ruim e estar triste não é estar ou ser fraco. Estar enfrentando um processo de adoecimento pode não ser fácil, e muitas vezes não é. Pode não haver necessariamente uma cura, mas a possibilidade de bem-estar e adaptação apesar de determinada condição física. E estar triste é reconhecer a própria subjetividade, da qual pouco se fala nos tratamentos de saúde. Estar triste é reconhecer que há processos nas nossas vidas que podem ser mais dolorosos e que podemos aprender a lidar com eles. Significa ainda que temos POTENCIAL para aprender a lidar com momentos de adoecimento e de crise. 
Por outro lado, deslegitimar tristeza e desconsiderar a subjetividade não contribui para cura ou recuperação, pois para que haja adaptação é preciso antes que se saiba os limites de si e é justamente deles que a tristeza nos fala. Desqualificar e pretender esconder a tristeza não é portanto, sinal de força, mas de desrespeito consigo mesmo. O respeito ao próprio momento e ao processo individual de adaptação são fundamentais e estes sim, sinais de compatibilidade com a saúde integral. É preciso proporcionar acolhimento para a recuperação do sujeito, inclusive para que se recupere da própria tristeza.

*Flávia Andrade Almeida é Psicóloga Clínica e Hospitalar, Especialista em Psicologia da Saúde, Psico-oncologia e Prevenção do Suicídio. Mestranda em Filosofia (Suicídio na Biopolitica) e autora do blog e página Psicologia e Prevenção do Suicídio.



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